sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

O sonho de Lampião

 

Lançamento: O sonho de Lampião

O convite para escrever uma história sobre Lampião veio da escritora Penélope Martins, que fora sondada pela editora Ciranda Cultural. Para Penélope, eu era a pessoa ideal, embora, apesar de haver editado um livro sobre Lampião, escrito pelo saudoso historiador Antonio Amaury, em colaboração com seu filho Carlos Elydio, eu nunca tenha me debruçado sobre a história do personagem. Como autor, ressalve-se, já que sempre busquei conhecer, na medida do possível, a vasta bibliografia sobre o famoso facínora. Verdade seja dita: quanto tinha por volta de nove anos, escrevi um cordel narrando as façanhas de Lampião e Maria Bonita, a partir de relatos anedóticos ou lendários. O caderno, com o original, está, infelizmente, perdido para sempre. 

Por tudo isso, ao responder a Penélope, que atuava como interlocutora da editora Janice Florido, eu disse que aceitava desde que ela assinasse comigo o trabalho. Não seria um cordel, mas um romance biográfico, então, a devolução do convite fazia todo o sentido. "Mas eu conheço pouco sobre a vida de Lampião" foi a sua resposta. Eu redargui que isso não seria problema e indiquei-lhe uma bibliografia que, se não era volumosa, continha o essencial para a viagem que faríamos. E o livro que, desde o início se chamou O sonho de Lampião, acaba de nascer. Com o logo da Principis, selo ligado à Ciranda. E nasceu mais formoso do que imaginávamos, graças às delicadas e sugestivas xilogravuras de Lucélia Borges.

Cada capítulo é aberto por sextilhas compostas ao gosto popular, emulando a epopeia do cangaço com seus cantos de amor e de guerra. 

Da história propriamente dita muitos sabem o começo e o final. Mas resolvemos narrá-la de outra forma, fazendo de Lampião um contador de histórias, como Ulisses, desfiando seu rosário para o futuro sogro Zé de Felipe ou para o fotógrafo e dublê de cineasta, o sírio-libanês Benjamin Abrahão. 

Abaixo, um trecho do posfácio, escrito à guisa de ensaio, mostrando a presença de Lampião na literatura de cordel, no cinema e na música popular.

Conversa de cangaceiras
Xilogravura de Lucélia Borges

"Quando iniciamos a pesquisa que redundaria neste livro, sabíamos do tamanho do desafio e das dificuldades que nos esperavam. Afinal de contas, escrever sobre Lampião significa revisitar não apenas a sua história, mas de muitos outras personagens, unidos por uma teia de tragédias urdidas em tramas violentas encenadas no cenário inóspito do sertão nordestino. A mais importante, por razões óbvias, é Maria Gomes de Oliveira, a Maria de Déa, que a posteridade rebatizaria como Maria Bonita. E foi a partir dela, ou melhor, de seu núcleo familiar, apresentando o cenário da fazenda Malhada da Caiçara no sertão da Bahia, que resolvemos começar nossa jornada. Trata-se, afinal, não de um retrato fiel, mas de uma reinterpretação, com matizes ficcionais, da trajetória de Virgulino Ferreira da Silva, o temível Lampião, que o poeta cordelista José Pacheco da Rocha, exagerando, mas não mentindo, dizia ser “assombro do mundo inteiro”. Esses matizes podem ser percebidos principalmente nos diálogos, culminando com o tema do título, o sonho do cangaceiro, que apresenta uma encruzilhada narrativa, tentando imaginar o que seria a vida de Lampião e, consequentemente, a de Maria de Déa, se ele não tivesse sido acusado e perseguido por José de Saturnino, entrando para o cangaço e arrastando consigo parte de sua família.

Maria de Déa
Xilogravura de Lucélia Borges

A ideia, quase uma fanfic, discute o fatalismo vivo nas crenças populares, reforçado nos discursos de cangaceiros e volantes, que, por vezes, serve para justificar as mazelas sociais e as seculares injustiças. Algumas perguntas não precisam ser respondidas, mas devem ser marteladas, pois, se não levam a um consenso, ajudam a enxergar melhor uma história que passa longe de ser unidimensional. “Lampião, escreve Eric Hobsbawn, foi e ainda é um herói para o seu povo, mas um herói ambíguo”. Mais que ambíguo, contraditório, daí as muitas interpretações conflitantes, versões desencontradas e perfis que ora focalizam o homem, ora o mito.

Corisco, Dadá e Zé Rufino
Xilogravura de Lucélia Borges

O cangaço, sabemos, não teve início com Lampião, e a nossa história mostra, inclusive, que seu ingresso ocorreu, depois de algumas refregas com José de Saturnino, com a sua acolhida pelo bando de Sinhô Pereira. O Nordeste ainda não havia se esquecido de Antônio Silvino, alcunha de Manuel Batista de Moraes, cangaceiro nascido na Serra da Colônia, Pernambuco, mitificado em romances versados pelos poetas Francisco das Chagas Batista e Leandro Gomes de Barros. Silvino, depois do assassinato de seu pai, Pedro Batista de Morais, e da apropriação de terras de sua família, pela companhia inglesa Great Western, para construção de uma estrada de ferro, depois de liderar por dezoito anos um bando armado, acabou sendo preso em 1916; permaneceu na casa de detenção do Recife até 1937, quando foi indultado pelo presidente Getúlio Vargas.  Antes de Antônio Silvino, a história registra os nomes de Adolfo Meia-Noite, Rio Preto, Jesuíno Brilhante e Lucas de Feira, entre outros."

Lampião, Benjamin e Padre Cícero
Xilogravura de Lucélia Borges


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sábado, 12 de novembro de 2022

Lançamento: Contos Encantados do Brasil


Contos Encantados do Brasil, uma viagem ao Brasil profundo
por meio dos contos populares. 

Acaba de sair, com o selo da Aletria, editora mineira sob a coordenação de Rosana Mont'Alverne, o livro Contos Encantados do Brasil, reunião de contos de tradição oral, recolhidos por Marco Haurélio e ilustrados, com xilogravuras, por Lucélia Borges. A obra inova por trazer duas opções de capa assinadas por Caroline Gischewski, responsável pelo projeto gráfico, a partir de xilogravura de Lucélia Borges.

Abaixo, compilamos trechos do prefácio escrito pelo autor:

Se perguntarmos a alguém por que faz determinado gesto, ele poderá não saber o motivo, e talvez responda que o faz “inconscientemente” ou aprendeu com outra pessoa… que aprendeu com outra pessoa, que aprendeu com outra… De forma semelhante, os contos ditos tradicionais se propagam. Ouvimos, repetimos, lembramos, esquecemos, ampliamos, reduzimos. Contamos. E, quando contamos, trazemos para junto de nós, para o nosso círculo familiar, narradores e mais narradores que, ao longo de séculos, milênios talvez, garantiram que as histórias não se perdessem. A trajetória dos contos populares, com destaque para sua incrível capacidade de adaptação, tem suscitado acalorados debates e fomentado o surgimento de algumas escolas, cuja sobrevivência dependeu sempre mais do poder de argumentação de seus membros do que da sua capacidade de, efetivamente, comprovar os seus postulados. Não é nosso propósito aqui enumerar as escolas do Folclore, nomear seus membros ou exumar as suas doutrinas. Importa-nos, por enquanto, tão somente, chamar a atenção para o conto popular, objeto do presente trabalho, uma recolha abrangente, compreendendo um significativo número de versões, que vão desde os contos mais complexos, como o de cunho maravilhoso, aos aparentemente mais simples, e, quando escrevo “mais simples”, refiro-me a questões puramente formais, já que, na contística popular, toda pedra é preciosa. Mesmo o que não reluz é ouro.


O conto popular, também chamado estória (ou história) de Trancoso, da Carochinha, é uma das mais antigas formas de expressão verbal, contemporâneo dos primeiros grupos humanos, irmão do mito, com o qual se confunde, ainda que este se apoie num “ato de crença, de crença em seu objeto, sem o que perde sua base”.1 Irmanado ainda à lenda e à fábula, alimento intelectual de todos os povos, de todas as épocas, o conto preserva, quase sempre de forma cifrada, informações sobre hábitos, usos, costumes, provérbios, crenças, estatutos de épocas as mais diversas, abarcando, praticamente, em sua amplitude temática, todos os assuntos relativos à ciência do Folclore; constitui-se, porém, em parte inseparável do todo, “como a mão com relação ao corpo ou a folha com relação à árvore”. Difere da lenda e do mito por sua universalidade, e com isso não queremos dizer que todos os contos alcançam todos os cantos, e, sim, que, aonde chegam, recebem melhor acolhida graças à sua poderosa capacidade de adaptação.

"Canivetão". Xilogravura de Lucélia Borges. 

A maior parte dos contos maravilhosos difundiu-se por uma vasta área geográfica que vai da Índia à Irlanda, ampliada, depois, pelo processo colonizador. Chegaram ao Brasil, certamente, com as primeiras levas de colonos portugueses e, misturados às narrativas ameríndias, nas quais predominava o fantástico, e às histórias trazidas das Áfricas, ganharam novo colorido no Nordeste primeiramente, mormente nos sertões povoados de assombros milenares. No conto, nada é novo e nada é velho. As transformações atendem a uma dinâmica muito particular que envolve questões externas, como a influência do ambiente e dos costumes e crenças, e internas, estas atinentes às dimensões alegórica e simbólica.

Nas versões sertanejas do conto da Cinderela, a moça não vai ao baile no palácio do príncipe, mas à missa, realiza tarefas típicas do sertão de outrora, como adicionar água aos potes ou alimentar os animais das velhas que a auxiliarão doravante. Os motivos essenciais do conto, no entanto, pouco mudam, qualquer que seja a época ou o lugar. O sapato que possibilita o casamento de Cinderela com o príncipe, por exemplo, é um tema que pode ser rastreado em milhares de versões. Era parte de um rito matrimonial introduzido no Egito, provavelmente durante o domínio persa, nutrindo a lenda de Ródope, a cortesã grega que vem a desposar o faraó. É o que nos conta Heródoto: uma águia arrebata o sapato da nossa heroína e o deixa cair sobre o faraó, fazendo com que o soberano do Egito envide todos os seus esforços para encontrar a dona do tal calçado que tanto o fascinara (História, tomo II, XCVIII). O teste de casamento, por meio do experimento do calçado, era, segundo informação de Luís da Câmara Cascudo, “ainda popular na Alemanha do século XVI”, aproximadamente trezentos anos antes de os Irmãos Grimm registrarem a versão mais famosa da história.

"A princesa da Cara de Pau", versão brasileira de "Pele de Asno".
Xilogravura de Lucélia Borges

Todos os contos reunidos neste livro foram colhidos diretamente da fonte da memória, isto é, foram ouvidos, anotados e fixados, mantendo-se sua estrutura básica e conservando, quase sempre, as marcas da oralidade. Os narradores, guardiães da tradição, são identificados ao final de cada história. Um deles, o senhor José Marques de Sousa, apelidado carinhosamente de Zé Cabeça, falecido em 2019, por ocasião da coleta das histórias, em 2015, afirmou ter 107 anos de idade. Além de Bela Inês e a Moura Torta Panela, colher e chicote, narrou outros contos, publicados no livro Vozes da tradição. Três histórias (Branca Flor, Bestore e a princesa Maria Borralheira) foram publicadas originalmente no livro O Príncipe Teiú e outros contos brasileiros, de circulação muito restrita.

No tangente à divisão, optamos pelo Sistema ATU (Aarne-Thompson-Uther), adotado em outras publicações nossas, com uma única alteração: começamos pelos contos maravilhosos, ou de encantamento, mais numerosos, e não pelos contos de animais, como seria de se esperar, por se tratar de uma tabela alfanumérica. Contamos, como sempre, com o apoio dos professores Paulo Correia e José Joaquim Dias Marques, do Centro de Estudos Ataíde Oliveira (CEAO), da Universidade do Algarve, Faro, Portugal.

"Maria da Cobrinha". Xilogravura de Lucélia Borges.

Recolhidos, em sua maioria, no sertão baiano, universais nos motivos e temática, nacionais nas cores, sotaques, variantes linguísticas e no colorido da flora e fauna, os nossos contos comprovam o que foi dito pelo grande escritor mineiro João Guimarães Rosa, que também bebeu na fonte da tradição: “O sertão é o mundo.” Mundo que vira mar, como previu o beato Antônio Conselheiro, mar de histórias, água de vertente que, teimosa, ainda cisma em correr.

Italo Calvino, no posfácio ao Pentameron, em 1974, afirma que “el mundo de las fábulas és um mundo matinal”, e, no caso de Basile, manifesta-se sempre com uma metáfora distinta. Na nossa coletânea, alvoradas e crepúsculos se alternam em muitas narrativas, mas a mensagem, implícita, é a de que as histórias sempre vêm à luz. Basta que tomemos assento e abramos o coração e os ouvidos, para que a jornada comece. Ou recomece, quando, a cada escuta, espaço e tempo se transfiguram e podemos contemplar, embevecidos, as cores de um entardecer que jamais deixou de ser manhã.

MAIS INFORMAÇÕES:

Título original: Contos Encantados do Brasil

2022, 1ª edição

337 páginas, 13,5 x 20,5 cm

ISBN: 9786586881851

Autor: Marco Haurélio

Ilustrações: Lucélia Borges


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Fonte: Cordel Atemporal. 

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Grupo de estudos: Mitologia e contos de fadas

  DO MITO AO CONTO, DO CONTO AO MITO: UMA JORNADA POÉTICA



SOBRE O CURSO 

Onde começa o conto e termina o mito? Essa pergunta, ouvida em muitas ocasiões, sempre que respondida, deixa mais dúvidas que certezas. Afinal de contas, as jornadas aventurosas de Perseu, Gilgamesh, Hércules e Percival podem ser enquadradas em qual gênero? O que tem em comum a Brunhilde das sagas nórdicas com Briar Rose (a Bela Adormecida) dos contos de fadas? Por que o ciclo da Távola Redonda, ainda que calcados em aventuras, galantes ou tenebrosas, vividas por heróis lendários, traz tantas personagens femininas de destaque? Quem foi, afinal, Morgana Le Fay, quase sempre identificada ao mal e à dissolução da Távola Redonda? O que tem Deméter em comum com “a princesa que não sorria” dos contos maravilhosos e novelescos? Quais são os contos populares registrados pela antiga literatura do Egito e da Mesopotâmia? Bem, ficam as perguntas no ar à guisa de convite para uma imersão no universo das narrativas míticas que vivem para sempre em muitas estantes e nos nossos sonhos.

 

Percurso do grupo

Primeiro encontro (24/2): Gilgamesh, Perseu e Percival: as três faces do herói.

Segundo encontro (31/3): Deméter e o mito da terra devastada. E por que rir sempre foi o melhor remédio?

Terceiro encontro (28/4): Na corte do Rei Artur: Merlin e Viviane – Guinevere e Lancelot – O cavaleiro verde.

Quarto encontro (26/5): Lilith, Hécate e Medeia: o lado sombrio do eterno feminino.

Quinto encontro (30/6): Deuses da luz e das trevas: da mitologia aos quadrinhos e ao cinema.

 

SUGESTÕES DE LEITURA

ALCOFORADO, Doralice. Belas e feras baianas. Salvador: SECULT, 2008.

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Tradução de Arlene Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.

BRUNEL, Pierre (org.). Dicionário de mitos literários. Editora da UnB, José Olympio Editora, 1998.

CALVINO, Ítalo. Fábulas italianas. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. Tradução de Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Pensamento, 1989.

_____________. Deusas: Os mistérios do divino feminino. São Paulo: Palas Athena, 2016.

CARDIGOS, Isabel; CORREIA, Paulo. Catálogo dos Contos Tradicionais Portugueses (Com as versões análogas dos países lusófonos). CEAO da Universidade do Algarve / Edições Afrontamento: Portugal, 2015.

CASCUDO, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. 13. ed. São Paulo:  Global, 2004.

COELHO, Adolfo. Contos populares portugueses. Portugal: Compendium, 1996.

ELIADE, Mircea. O mito do eterno retorno. Tradução de Mnuela Torres. Lisboa: Edições 70, sd.

FERREIRA, Jerusa Pires. Armadilhas da memória (conto e poesia popular). Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1991.

FRANZ, Marie-Louise von. A sombra e o mal nos contos de fadas. Tradução de Maria Cristina Penteado Kujawski. São Paulo: Paulinas, 1985.

FROBENIUS, Leo; FOX, Douglas C. A gênese africana. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Landy, 2005.

GUIMARÃES, Ruth. Calidoscópio: a saga de Pedro Malasartes. São José dos Campos: JAC Editora, 2006.

GIMBUTAS, Marija. The Language of the Goddesses. San Francisco (EUA): Harper & Row, Publishers, 1995.

HAURÉLIO, Marco. Contos e fábulas do Brasil. Classificação e notas: Paulo Correia. São Paulo: Nova Alexandria, 2011.

_____________. Contos folclóricos brasileiros. Classificação e notas: Paulo Correia. São Paulo: Paulus, 2010.

_____________. O príncipe Teiú e outros contos brasileiros. São Paulo: Aquariana, 2012.

_____________, Wilson Marques. Contos e Lendas da Terra do Sol. São Paulo: Paulus, 2019.

_____________. Vozes da tradição. Colaboração: Lucélia Borges. Fortaleza: IMEPH, 2018.

KIRK, G. S. The nature of greek myths. EUA: Penguin Books, 1985.

LEEMING, David. Do Olimpo a Camelot. Um Panorama da Mitologia Europeia.Readução de Vera Ribeiro. São Paulo: Zahar, 2004.

MEREGE, Ana Lúcia. Os contos de fada – origem, história e permanência no mundo moderno. São Paulo: Claridade, 2010.

MÜLLER, Max. Mitologia comparada. Barcelona: Vision Libros, sd.

NASCIMENTO, Bráulio do. Estudos sobre o conto popular. São Paulo: Terceira Margem, 2009.

PIMENTEL, Altimar. Estórias de Luzia Teresa (Três volumes). Brasília: Thesaurus, 1995.

PROPP, Vladimir. As raízes históricas do conto maravilhoso. 2. ed. Tradução de Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

_____________. Édipo à luz do folclore. Tradução de António da Silva Lopes. Lisboa: Editorial Veja, sd.

ROMERO, Sílvio. Contos populares do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Edusp, 1985.

VERNANT, Jean-Pierre. O universo, os deuses e os homens. Tradução de Rosa freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

Quem é o professor

marcohaurelio

Marco Haurélio, escritor, professor e divulgador da literatura de cordel, tem mais de 40 títulos publicados, a maior parte dedicada a este gênero que conheceu na infância, passada na Ponta da Serra, sertão baiano, onde nasceu. Vários de seus livros foram selecionados pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) para o Catálogo da Feira do Livro Bolonha. Finalista do Prêmio Jabuti, suas obras receberam distinções como o selo Altamente Recomendável, da FNLIJ, e o selo Seleção Cátedra-UNESCO (PUC-Rio). Em sua bibliografia destacam-se as obras Contos folclóricos brasileirosA lenda do Saci-PererêMeus romances de cordelLá detrás daquela serraO encontro da cidade criança com o sertão meninoTristão e Isolda em CordelA jornada heroica de Maria Contos e fábulas do Brasil. Ministra cursos sobre cordel e contos tradicionais em espaços os mais diversos.


Quando

Dias 24/2; 31/3; 28/4; 26/5 e 30/6 (às quartas-feiras)
Das 19h30 às 21h30

Onde 

Online
As informações de acesso serão disponibilizadas por e-mail.

Público

Geral

Turma

30 pessoas

Investimento

R$ 250,00 (os cinco encontros)
R$ 60,00 (encontros avulsos, não é possível parcelar)

PagSeguro
* em até 4X sem juros no cartão de crédito.
* 7% de desconto para pagamentos via boleto bancário.

PayPal
* 7% de desconto no cartão de crédito (parcela única).
* em até 6X sem juros no cartão de crédito.

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domingo, 1 de março de 2020

Joias da tradição oral de Moçambique



Boas novas! Foi lançado, pela Editora de Cultura, o livro Ithale: fábulas de Moçambique, de Artinésio Widnesse, ilustrado com xilogravuras de Lucélia Borges e com projeto gráfico de Camila Teresa. Artinésio, que morou no Brasil e possui um doutorado pela USP, em visita à nossa casa, pouco antes de seu retorno a Moçambique, sua terra natal, contou-nos algumas histórias ouvidas ainda na infância. Quando perguntamos se ele já havia pensado em enfeixá-las num livro, respondeu modestamente que não, e que jamais imaginou que alguém se interessaria em lê-las, já que ainda é muito comum em seu país e entre o seu povo, Lomwe, o hábito de contar e difundir oralmente tais histórias. Agora poderemos conhecer algumas delas, que, em versões e variantes, correm nas águas de nossa tradição.

Assino, com muito orgulho, a apresentação deste livro que, ainda que voltado ao público infantojuvenil, deverá interessar aos estudiosos dos contos de tradição oral, haja vista suas histórias serem todas recolhidas diretamente da fonte da memória.
Xilogravura de Lucélia Borges para o conto
"A princesa que não falava com ninguém".

AS FÁBULAS DE MOÇAMBIQUE

Ithale (Ethale no singular) significa fábulas em Elomwe, língua falada pelo povo Lomwe, da região central de Moçambique1. Ela integra o grande ramo Banto, de comprovada contribuição à cultura brasileira. Contribuição ainda viva nas narrativas orais, principalmente aquelas protagonizadas pelo Coelho, animal esperto, inimigo da feroz Onça e de outros bichos de grande porte. Amigo ou compadre Coelho no Brasil, Tío Conejo na América espanhola, Brer Rabbit nas Bahamas e no sul dos Estados Unidos, ele enfrenta e derrota, quase sempre, os animais grandes, ferozes e estúpidos.

Artinésio Widnesse, professor e contador de histórias, costumava escutar de sua mãe, Suzana Nicasso, sempre à noite e em volta da fogueira, diversos contos tradicionais em que o pequeno e esperto Coelho sobrepujava a Hiena e o Leão, mas, às vezes, também se dava mal. Afinal, quando a esperteza é muita, costuma engolir o esperto...


Xilogravura de Lucélia Borges para o conto "O coelho esperto".
O Coelho protagoniza sete dos dez contos aqui reunidos, todos eles recolhidos da tradição oral Lomwe. O primeiro, O coelho esperto, é uma variante curiosa do conto O boneco de breu (ou Tar-baby), difundido em várias partes da África e também na Índia, país no qual, segundo o folclorista Aurélio M. Espinosa, a história teve origem. Aliás, convém lembrar que houve muitos indianos trabalhando na África do Sul no século 19 – incluindo o grande pacifista Mahatma Gandhi. Para não falar do vaivém dos portugueses pela costa da África a caminho da Índia nos séculos 15 e 16... No Brasil, o grosso das versões registradas traz o macaco como animal esperto e guloso, que cai na armadilha do boneco de cera criado por uma velha.

Registrei A onça, o coelho e o jacaré no livro Contos e fábulas do Brasil (2011). Uma história interessantíssima é A princesa que não falava com ninguém, que aparece em Portugal, no Brasil e em praticamente toda a Europa, mas sempre com personagens humanos. Na versão registrada por Artinésio, além de encontrar os tradicionais adversários, Girafa, Javali, Búfalo e Hiena, acompanhamos as traquinagens do Coelho, cujo desafio é fazer falar uma princesa, filha do Leão, que jamais havia pronunciado uma única palavra em toda sua vida.
Lemos também, nesta bela coletânea, uma versão local da fábula do grego Esopo, A raposa e a cegonha, protagonizada por dois animais finórios: O Macaco e o Cágado. Assim como no clássico grego, de 600 antes de Cristo (a.C.), um animal convida o outro para comer em sua casa, mas cria tal embaraço que o visitante retorna para casa de barriga vazia. A vingança, claro, não tardará.
Outro conto de natureza exemplar é O Macaco avarento, que, em seu motivo principal – a cobrança absolutamente injusta e desproporcional de uma dívida –, ocorre na tradição oral de vários países, envolvendo também protagonistas humanos e com pano de fundo religioso. O Macaco, que rivaliza com o Coelho em matéria de esperteza, é o herói de nossa última história, um belo conto de esperteza em que o Tubarão é o grande antagonista. Uma versão antiquíssima, El Mono y la Tortuga (O macaco e a tartaruga), figura no Calila e Dimna, coleção de fábulas exemplares da Índia conhecidas no Ocidente a partir de uma tradução persa no século VI depois de Cristo (d.C.), ampliada em versões árabes e traduzida para o castelhano em 1251.

Ithale são, portanto, contos de coloração local, mas que dialogam com a tradição clássica do Oriente e do Ocidente. Afinal, Moçambique, por muito tempo uma possessão portuguesa, soube preservar suas mais caras tradições, adaptando as contribuições estrangeiras, sem perder a essência identitária dos muitos povos que formam o país. É uma parte dessa rica tradição, que nos parece tão familiar, que Artinésio Widnesse nos apresenta neste pequeno relicário.
Marco Haurélio
Autor de O cavaleiro de prata e
Breve história da literatura de cordel




ARTINÉSIO WIDNESSE SAGUATE nasceu em 1982 na Província central da Zambézia, Distrito de Namarrói, em Moçambique. Parte de sua infância foi vivida em meio à guerra civil que fustigava seu país. Cresceu ouvindo histórias de animais contadas por sua mãe e pelos seus irmãos mais velhos, mas também pelo seu avô paterno. Em 1988, refugiou-se, junto com sua família, no Malawi, país vizinho ao seu. Aos 8 anos de idade, teve o primeiro contato com o alfabeto em uma das escolas primárias locais. Os textos lidos na escola enriqueceram ainda mais a educação tradicional por ele recebida de sua família. Em 1993, retornou a Moçambique, onde continuou seus estudos. Apaixonou-se pela linguística e, também, pela literatura, tendo se formado em Ensino de Português, em 2008, na Faculdade de Ciências da Linguagem, Comunicação e Artes da Universidade Pedagógica de Moçambique (UP), Delegação de Nampula.

Na faculdade, começou uma afinidade com o Brasil, por meio de leitura de textos de autores brasileiros, como José de Alencar e Machado de Assis. Essa afinidade se consolidou em 2010, quando veio ao país cursar o mestrado. Em 2012, voltou a Moçambique, onde atuou como professor universitário. Em meados de 2013, foi agraciado com mais uma bolsa de estudos e optou, de novo, pelo Brasil. Em 2017, tornou-se doutor em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo (USP).

Sua tese de doutorado abordou o ensino bilíngue no curso fundamental em Moçambique. E foi na esteira desse espírito de concepção de material para o ensino que nasceu a ideia de registrar a cultura tradicional de seu povo. O livro que ora se publica no Brasil constitui sua estreia e faz parte de um projeto amplo de coleta e publicação de histórias de diferentes áreas de Moçambique, sobretudo as regiões rurais, com destino ao público infantojuvenil. As histórias aqui apresentadas são transcrições de histórias contadas por sua mãe e parentes.


FICHA TÉCNICA:
Título: ITHALE fábulas de Moçambique
Autor: Artinésio Widnesse
Ilustrações: Lucélia Borges
ISBN: 978-85-293-0213-3
Formato fechado: 16 x 23 cms
Nº de páginas: 48
Profundidade: 0,4 cm
Peso: 0,112 kg
Assunto principal: Contos
Assunto secundário: Literatura infantojuvenil moçambicana
Preço de capa: R$ 46,00

Publicado originalmente em Cordel Atemporal. 

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Quatro livros de Marco Haurélio são aprovados no Programa Minha Biblioteca



O escritor e pesquisador da Cultura Popular Brasileira, Marco Haurélio, em seu perfil do facebook, trouxe a seguinte informação:


"Uma ótima notícia. Quatro livros de minha autoria foram selecionados para o programa Minha Biblioteca, da Prefeitura de São Paulo. São eles: 

Lá Detrás Daquela Serra (Peirópolis), Ilustrações:Taisa Borges;

João Destemido e as Três Folhas da Serpente (Conhecimento), ilustrações: Veruschka Guerra;

O Urubu-Rei e Outros Contos Brasileiros (Nova Alexandria)

e Vozes da Tradição (IMEPH), parceria com Lucélia Borges e Ilustrações de Luciano Tasso.

Gratidão às editoras parceiras que investem e valorizam a cultura popular brasileira".

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Presença dos Contos Tradicionais de Câmara Cascudo na Literatura de Cordel


Contos Tradicionais do Brasil  em edição da Global Editora


Contar histórias tem sido, ao longo das eras, um assunto sério e também um ameno entretenimento. Ano após ano, histórias são inventadas, escritas, devoradas e esquecidas. Que acontece com elas? As poucas que sobrevivem e que, como sementes dispersas, o vento esparge durante gerações, engendram novos contos e proporcionam alimento espiritual a inúmeros povos. (...) Cada poeta acrescenta algo da substância de sua própria imaginação e as sementes, nutridas, revivem.(Heinrich Zimmer)

No Brasil, à margem da cultura livresca, dos moldes forçosamente importados, dos salões engalanados, vicejou opulenta, portentosa, espantosa literatura oral, fazendo, muitas vezes, pela boca de uma única pessoa se manifestarem civilizações há muito defuntas. Pode se argumentar que apenas um retalho, ou, menos ainda, um fiapo das antigas tradições chega até nós. Mas não é pouco. Na contística popular do Nordeste, por exemplo, é possível se escutar uma história que, em linhas gerais, é a mesma que os povos estabelecidos à margem do Nilo, no Egito, repetem há mais de 3.000 anos. As nossas orações aos santos, ligeiramente modificadas, em tempos de antanho, devem ter acalmado a fúria e comprado o obséquio de muitos deuses de incontáveis panteões. Dessa literatura oral a arte de um país que se pretende sério será sempre a maior tributária. A Literatura de Cordel é um dos galhos desta árvore. Se dela se desprender, perderá o sentido e a razão de existir.

A Literatura de Cordel no Brasil, a partir dos poetas pioneiros Leandro Gomes de Barros e Silvino Pirauá de Lima, sempre teve no conto popular um motivo essencial. As histórias que sobreviveram à peneira do tempo e chegaram até nós, refundidas em versos de sete sílabas, são o que há de mais característico no Cordel. Embora determinados pesquisadores reduzam o Cordel no Brasil à sua (importante) função de “jornal de povo”, é no manejo do material tradicional, oriundo ninguém sabe d’onde, trazido ninguém sabe por quem, que o poeta popular sempre estará mais à vontade. Foi dos contos populares, em suas múltiplas classificações, que nos chegaram os grandes clássicos da Literatura de Cordel.Os motivos dos romances e folhetos são os mais diversos: princesas encantadas, como Rosamunda ou a da Pedra Fina; heróis imponentes enfrentando todo tipo de perigo e malefício, a exemplo de João Corajoso, João Valente, João Sem-Medo, João Acaba-Mundo, João de Calais, João Soldado e, para variar, Juvenal e o príncipe Roldão. Estes são personagens saídos diretamente dos contos maravilhosos, também chamados contos de encantamento ou, por influência europeia, contos de fadas.

Mas o universo do Cordel é bem mais amplo: engloba ainda as histórias de animais, calcadas nas velhas fábulas, onde o riso brota espontâneo nos lábios de quem as lê ou as escuta. É a magia da literatura oral preservada no bom Cordel. Falando em riso, alguns personagens do Cordel, famosos por sua peraltice, têm origem também nos contos populares. Os exemplos mais notórios são os de João Grilo e Pedro Malazarte (ou Malasartes). São os amarelinhos, que trapaceiam os poderosos, sejam eles fazendeiros, sultões, ou o próprio Diabo. À lista dos sabichões devem ser acrescentados Cancão de Fogo, criação do genial Leandro Gomes de Barros, que estreou no Cordel antes de seus colegas Grilo e Malazarte, e também os poetas portugueses Camões e Bocage. Estes últimos, nos contos faceciosos, nas anedotas e no Cordel, possuem os mesmos atributos dos amarelinhos.

No Cordel, as histórias dramáticas quase sempre têm origem em livros de grande aceitação popular. Em alguns casos parecem fugir à estrutura do conto tradicional, embora tragam elementos originários deste, como a condenação de uma pessoa à morte, para se evitar o cumprimento de uma profecia. Outras vezes, tal condenação se dá por uma falsa acusação, geralmente imputada a uma esposa virtuosa por um cunhado devasso. A vítima é salva na última hora por um surto de piedade do carrasco e pelo acaso feliz de sempre ter um animalzinho por perto, que será morto em lugar do (a) condenado (a), fornecendo um pedaço de seu corpo (língua, fígado, coração) para comprovar a execução. O divulgadíssimo conto Branca de Neve e os Sete Anões (na versão dos Irmãos Grimm) e Maria de Oliveira, recolhido por Câmara Cascudo, trazem o mesmo motivo que, aliás, está na Bíblia, no livro de Gênesis, mais especificamente na história de José, quando seus invejosos irmãos ludibriam o pai, Jacó, fazendo-o crer na morte do filho, apresentando como prova suas vestes manchadas em sangue de carneiro.

É de Câmara Cascudo que passaremos a falar agora. Aliás, do universo da novelística popular a quem o devotado Mestre rio-grandense do norte dedicou alentados estudos, além de registrar algumas das mais belas versões, enfeixadas no volume Contos Tradicionais do Brasil. Todavia, seu trabalho ultrapassou o registro e a classificação dos contos. Pesquisador infatigável em sua honestidade intelectual, Câmara Cascudo estudou as raízes históricas e imaginou um possível trajeto que, nas veredas do espaço e do tempo, tenha possibilitado a esse tesouro imaterial chegar até nós e por aqui se aculturar. Quando possível, ele nos aponta referências na literatura clássica, detecta as pegadas dos heróis do conto maravilhoso em episódios da mitologia greco-romana e nos livros de indiscutível ancianidade da Índia dos Vedas e do Mahabharata.

Meu papel é estabelecer ligações entre os contos populares recolhidos e anotados por Câmara Cascudo e os folhetos e romances de Cordel diretamente inspirados nesta fonte ou que, mesmo com outra origem, estão vinculados ao trabalho do Mestre, que, melhor do que ninguém, conhecia a universalidade dos temas, tipos e motivos. Só é preciso atentar para um detalhe: às vezes acontece de o poeta popular, garimpeiro do inconsciente coletivo, se valer de mais de uma história para, ao final, apresentá-la como narrativa única. Exemplo: Proezas de João Grilo, de João Ferreira de Lima, é uma reunião de pequenas facécias, enfeixadas numa única história, resultado de uma compilação que tornará possível ao Grilo saltar do “sítio onde morava” para o Egito. Lá, terá de responder às perguntas do rei Bartolomeu, o sultão, dentre elas, o mesmo enigma que a Esfinge, um dos símbolos do Egito, propôs a Édipo:

Responda qual o animal
Que mostra mais rapidez
Que anda de quatro pés
De manhã por sua vez
Ao meio-dia com dois
À tardinha anda com três.

Tal qual o desafortunado herói grego, João Grilo responde que o animal em questão é o homem nas diferentes etapas de sua vida. Não por acaso, um dos contos da safra de Câmara Cascudo, Adivinha Adivinhão, compõe o mosaico de proezas do célebre amarelinho. O livro das Mil e Uma Noites traz exemplos muito próximos do motivo da inteligência posta à prova, enredo básico de muitos títulos de Cordel, sobressaindo-se no gênero a História da Donzela Teodora. Câmara Cascudo, aliás, nem ousava discutir a origem árabe da Donzela, no que estava coberto de razão. Há versões da mesma história nas Mil e Uma Noites, em que a Teodora tem o nome de Escrava Simpatia (La Docta Simpatia, emCinco Livros do Povo).

Câmara Cascudo e Silvio Romero registraram, respectivamente, A Princesa AdivinhonaO Matuto João, em que o protagonista é um amarelo que decifra um enigma, obtendo como prêmio a mão da princesa que o formulara. Obviamente, o amarelo não é outro senão o nosso João Grilo, irmão gêmeo de Pedro Malazarte e, como foi comprovado, parente não muito distante da Donzela Teodora.Portanto, não mentem os que afirmam que o nosso João Grilo, apresentado ao mundo por Ariano Suassuna, como símbolo da malícia e sabedoria do nordestino espoliado, é um personagem das Arábias.Como o percurso da literatura oral é o mais improvável, até os célebres contos de Grimm e Perrault estão espalhados, na íntegra ou em partes, nas coletâneas de Câmara Cascudo e de outros folcloristas e na memória de muita gente ainda viva mas silenciada pela televisão.

Chapeuzinho VermelhoO Pequeno PolegarJoãozinho e Maria, entre outros, estão presentes no Contos Tradicionais do Brasil, sem falar de Bicho de Palha, versão tupiniquim de Pele de Asno, de Perrault. O conto Os Quatro Irmãos Habilidosos, de Grimm, mereceu do poeta popular Manoel D’Almeida Filho uma adaptação famosa, Os Quatro Sábios do Reino. Assim como O Fogo Rejuvescedor, também da coleta dos alemães, foi rebatizado em Cordel: Jesus e o Mestre dos Mestres. E, geralmente, as fontes do poeta popular não são os livros impressos mas o livro, o grande livro que é o inconsciente coletivo.

Mestre maior do folclore brasileiro.
Algumas vezes se faz presente na história em Cordel um ou outro episódio onde se evidencia a matriz do conto popular. O ciclo que Câmara Cascudo denominou Natureza Denunciante fornece um motivo relevante para aquela que talvez seja a mais comovente história urdida por um bardo popular, O Cachorro dos Mortos, de Leandro Gomes de Barros. A cena é esta: a jovem Angelita, após ver seus irmãos serem mortos pelo brutal Valdivino, por ela repudiado, evoca as únicas testemunhas do bárbaro crime – ela morreria em seguida –, que eram o cachorro Calar, um “gameleiro” e uma flor. Reafirmando a sabedoria popular, o assassino retorna ao local do crime e é reconhecido pelo cachorro, despertando com sua algazarra a desconfiança das autoridades presentes a uma festa anual realizada no local onde os três desventurados irmãos receberam sepultura. Uma carteira encontrada por duas crianças num ninho de rato no “gameleiro” com uma confissão de próprio punho do assassino, é a prova cabal de seu crime e a realização do decreto de uma justiça invisível porém infalível, na qual ainda creem os nossos autênticos sertanejos.Na linha do exemplo famoso, reproduzido na sinopse acima, Câmara Cascudo nos conta de um homem curiosamente chamado Valdivino, assassinado por ladrões num ligar deserto. As testemunhas do crime são duas garças que passam voando e a quem Valdivino recorre no momento derradeiro. Numa ocasião festiva, um dos bandidos se trai justamente no momento em que passam duas garças voando e que ele, distraidamente, exclama: “Lá vão as testemunhas de Valdivino!...” Os circunstantes, amigos do desaparecido, descobrem os criminosos e, como no famoso romance de Leandro, a natureza denuncia mais um crime...

Enfim, são muitas as associações entre a Literatura de Cordel e os contos populares, quaisquer que sejam os gêneros ou os ciclos temáticos. Algumas vezes essas associações aparecem sutilmente costuradas num enredo mais denso, mas perfeitamente integradas à trama, como em O Cachorro dos Mortos.


Nota do blog: Parte deste texto, de autoria de Marco Haurélio, integra a introdução da caixa temática 12 Contos de Cascudo em Cordel, editada pela Queima-Bucha.

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