quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

O Auto da Compadecida e a literatura de cordel


Por: Marco Haurélio


Foi num folheto de gracejo que Ariano Suassuna encontrou o personagem-símbolo de sua dramaturgia. As Proezas de João Grilo (ver trecho abaixo), história escrita em 1932 por João Ferreira de Lima, trazia como protagonista o célebre amarelinho oriundo dos contos populares portugueses, que, no processo de aculturação, ganhou características idênticas às de outro famoso espertalhão de origem ibérica: Pedro Malazarte. Esse mesmo João Grilo será reaproveitado no Auto da Compadecida, transformado em filme em 2000 por Guel Arraes, com Mateus Nachtergaele (João Grilo) e Selton Melo (Chicó) nos papéis principais.

João Grilo foi um cristão
que nasceu antes do dia,
criou-se sem formosura
mas tinha sabedoria,
e morreu depois da hora
pelas artes que fazia.

(...)

Na noite que João nasceu,
houve um eclipse na lua,
e detonou um vulcão,
que ainda continua.
Naquela noite correu
um lobisomem na rua.

(...)

Entretanto, a Compadecida se baseia em três folhetos distintos, dois deles escritos por Leandro Gomes de Barros. O primeiro é O Cavalo que Defecava Dinheiro, que mostra como um finório consegue lograr um duque invejoso convencendo-o de que um cavalo é realmente capaz de obrar (sem trocadilho) o prodígio do título. Obviamente quem assistiu à peça ou à uma de suas versões para o cinema, sabe que o cavalo foi transmutado num gato, por motivos mais que compreensíveis. O outro poema de Leandro reaproveitado por Suassuna é O Dinheiro (O Testamento do Cachorro), onde aparecem as figuras do padre e do bispo. A autoria de Leandro é inquestionável, embora a origem dos motivos que compõem a estória seja mais difícil de rastrear. O próprio Ariano reconhece essa dificuldade quando afirma: “- a história do testamento do cachorro, que aparece no Auto da Compadecida, é um conto popular de origem moura e passado, com os árabes, do Norte da África para a Península Ibérica, de onde emigrou para o Nordeste”.

Além destes dois poemas de caráter marcadamente cômico, o Auto propriamente dito – a última parte – tem por base o folhetoO Castigo da Soberba, de autoria desconhecida, embrora alguns atribuam-na a Silvino Pirauá de Lima. A história tem a marcante presença do imaginário medieval que impregna a obra de Gil Vicente, outra evidente fonte de Suassuna. Maria (Nossa Senhora) é a advogada. Jesus o Juiz, e o Diabo o acusador. É a Nossa Senhora – a “advogada nossa” da oração Salve Rainha – que a alma recorre, em vista da iminente condenação. Evocada em nome de seu bendito filho, ela responde à súplica da alma. No final, após ouvir acusação e defesa, Jesus – no folheto também chamado Manuel – decide pela salvação da alma. O Diabo (Cão), vencido, chama os seus comandados. A estrofe abaixo reproduzida, com a última fala do tinhoso, está bem próxima do desfecho do Auto da Compadecida:

Vamos todos nós embora
Que o causo não é o primeiro,
E o pior é que também
Não será o derradeiro...
Home que a mulher domina
Não pode ser justiceiro.

Os três folhetos, diga-se de passagem, foram coligidos por Leonardo Mota no livro Violeiros do Norte. Indiretamente, este pesquisador cearense, ao reunir as três obras em seu precioso estudo, apontou o caminho que Ariano Suassuna deveria seguir, mesmo apoiando-se em outras tradições populares – especialmente o Bumba-meu-boi, onde os personagens Mateus e Bastião cumprem um papel semelhante ao de João Grilo e Chicó na Compadecida.

João Grilo marcou presença em outros folhetos de cordel, com destaque para O Professor Sabe-Tudo e as Respostas de João Grilo (de Klévisson Viana), A Professora Indecente e as Respostas de João Grilo (de Arievaldo Viana, João Grilo, um presepeiro no palácio (de Pedro Monteiro) e Presepadas de Chicó e Astúcias de João Grilo (de Marco Haurélio). O sucesso do Auto da Compadecida no cinema parece ter motivado o diretor Moacyr Góes a filmar O Homem que desafiou o Diabo (2007), baseado no livro As Pelejas de Ojuara, de Nei Leandro de Castro, que, por sua vez, parte de folhetos de cordel do ciclo do Demônio Logrado.


Publicado originalmente em Cordel Atemporal

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